domingo, 26 de novembro de 2017

O Matador

Direção: Marcelo Galvão, 2017.
Primeiro filme brasileiro original da Netflix, é uma espécie de tentativa de refazer Cidade de Deus (2002, Fernando Meirelles) no sertão nordestino. Alguns e acertos e alguns erros, é claro, que fazem do filme ser uma boa porta aberta para a Netflix continuar com as produções aqui, por mais que a maioria do público não tenha gostado (pelo que eu vi).

O filme conta a história de uma história: um homem e duas crianças são parados por dois pistoleiros numa mata, e para entreter os bandidos o primeiro homem decide contar uma boa história que aconteceu há algum tempo naquelas redondezas. O rapaz conta uma história que aconteceu entre 1910 e 1940 mais ou menos, época do Cangaço, com as figuras dos conhecidos Lampião, Maria Bonita e Corisco correndo por fora do foco principal do filme: Corisco até chega a aparecer, para situar a época e a importância. Havia crescido naquela região um tal de Cabeleira (Diogo Morgado), que fora criado por Sete Orelhas (Deto Montenegro), um cangaceiro que em certo momento desaparece, e Cabeleira vai atrás de respostas.

Como é uma história dentro de uma história, há muita narração, assim como Buscapé (Alexandre Rodrigues) faz em Cidade de Deus. Além da narração e de nomes de personagens serem bem similares (ou iguais), O Matador busca destrinchar a história no meio, e observar outros personagens que tiveram importância no local, mas com 45 minutos a menos e com personagens não tão carismáticos como Bené (Phellipe Haagensen), ficou difícil circular no núcleo desses personagens enquanto outros ficavam abandonados. Por isso, há uma evidente quebra de ritmo da metade pro final, quando Cabeleira é deixado de lado por várias cenas.

       Mesmo sem Fátima Toledo para preparar o elenco d'O Matador, Diogo Morgado é uma grande surpresa como Cabeleira, um rapaz doído pelo seu passado, duro, sofrido, árduo, criado por um cangaceiro no sol quente do sertão. Com um andar pesado, característico, um olhar desconfiado mas confiante em si mesmo e uma voz arrastada, Cabeleira rapidamente fica conhecido e temido na região, e Morgado nos mostra o porquê com o seu trabalho. O grande vilão fica por conta do francês Monsieur Blanchard (Etienne Chicot), que mesmo sendo caricato, é ótimo para o papel.

       A obra tem como palco o nordeste brasileiro, e nada melhor como referência cinematográfica para isso do que Glauber Rocha. Com Barravento (1962), Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), e O Dragão da Maldade Conta o Santo Guerreiro (1968) no currículo, Rocha explorou bastante sua terra natal: não só as belezas naturais, a terra, o sol, as paisagens em si, mas também as pessoas que lá estavam, abandonadas pelo mundo. Enquanto Rocha ostentava uma fotografia P&B, Galvão tem as cores a seu favor, e sabendo muito bem disso ele abusa, de uma boa forma. A pobreza do povo, os rostos cansados e suados pela vida, e a imensidão que é o sertão são destacados com cores quentes e até alguns takes com a luz conta que dão quadros belíssimos. Além de Rocha, há muita influência de Sergio Leone (Il buono, Il brutto, Il cattivo, 1966), com todos os closes nas faces dos personagens.


       
       O Matador é rotulado também como um western brasileiro, o que é muito raro de se ver: temos três grandes nomes, dois já citados de Galuber Rocha, e O Cangaceiro (1953, Lima Barreto). Talvez o mais conhecido seja Faroeste Caboclo (2013, René Sampaio), que infelizmente não é tão bom. Galvão traz uma crueldade que não estávamos acostumados antes nessas terras: muito tiro, muito grito e muito sangue, além da fome e das injustiças que assolam a região.

       Netflix inicia com um ótimo filme no cenário nacional, mesmo tendo seus problemas de ritmo, consegue contar uma boa história e arrisca em muitas coisas, homenageando o antigo e abrindo novos caminhos para o cinema brasileiro. Apesar das comparações que faço serem exageradas às vezes, vale muito a pena apostar nesta obra.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

O Despertar da Besta (Ritual dos Sádicos)

Direção: José Mojica Marins, 1970.
O cinema no Brasil sempre foi muito complicado. Tanto o fazer cinema quanto a história do cinema nacional são emblemáticas, difíceis e com muitas reviravoltas: filmes que se perderam no tempo, produtoras falidas e cineastas esquecidos. José Mojica Marins é um deles. Lembrado apenas por alguns diretores e críticos, Mojica não recebeu o respeito merecida em sua época, e o público brasileiro não deu atenção necessária às suas obras polêmicas e controvérsias (muito por conta da nudez que o levou para os pornôs posteriormente)

Terceira obra de Marins presente na lista dos 100 melhores filmes brasileiros segundo a Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), o Ritual dos Sádicos foi lançado comercialmente só nos anos 80. O longa permaneceu mais de dez anos sob o olhar dos censores da Ditadura, pois continha muita nudez e "tóxicos". Após seu lançamento comercial, adquiriu alguns prêmios no circuito nacional, e Mojica deixou sua marca (mais uma vez) no cinema brasileiro ao retratar em plena década de 70 o consumo das drogas e algumas práticas sexuais.

O Despertar da Besta conta a história de um psiquiatra que, visando estudar os efeitos do LSD na mente humana, injeta algumas doses da droga em quatro pacientes perturbados pela imagem de Zé do Caixão. A narrativa não é convencional: com o formato de um pseudo documentário, a primeira parte do filme conta alguns casos noticiados que envolviam o uso das drogas e a sexualidade aflorada, seja um romance, um orgia, um adultério ou um abuso. Enquanto os casos vão sendo contados por psiquiatras, Mojica (no papel dele mesmo) observa tudo sem entender a sua relação com os acontecidos, até o vermos num tribunal popular, onde sua obra cinematográfica está sendo julgada. Ainda como um pseudo documentário, em forma de ficção o diretor desabafa sobre a dificuldade de fazer filmes no Brasil, inovar num gênero inexistente no país e ainda ser esnobado pela crítica da época. 
       
      Após o julgamento, é iniciada a pesquisa com LSD nas pessoas, e Mojica brilha mais uma vez. Assim como em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967), o filme todo é em preto e branco e quando a experiência acontece o horror vira cor. Vale destacar também que até esta parte o filme contou apenas os casos citados acima, com muita nudez, mas sem o terror clássico de Zé do Caixão. Agora, em cores, Zé aparece aterrorizando as quatro cobaias, representando o terror em suas mentes com (novamente) muita nudez, gritos, agressões e sustos. 

      Como falei, Mojica brilha. Segundo ele, "fazer um filme no Brasil era como construir um foguete e voar até a lua", e tal qual Glauber Rocha (Terra em Transe, 1967) e Anselmo Duarte (O Pagador de Promessas, 1962), citados no filme, Mojica vai até a lua com seu foguete ardendo com o fogo do inferno e agoniando de dor. A viagem no ácido é construída com muitos cortes, risadas e gritos perturbadores, utilização de cores quentes como vermelho, amarelo e laranja contrastando com verde e azul e Zé do Caixão levando cada mente para sua loucura singular, remetendo ao sexo, ao horror e aos abusos. Destaque para a escada humana em que Zé desce no início.





      Interessante pontuar também que ao mesmo tempo em que temos, no Brasil, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Rogério Sganzerla realizando O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), Macunaíma (1969) e O Bandido da Luz Vermelha (1968), respectivamente, marcos do Cinema Novo, Tropicalismo e Cinema Marginal, José Mojica Marins não fica para traz e segue experimentando o seu terror brasileiro em uma das suas melhores formas, criticando a sociedade ao mesmo tempo em que a aterroriza, com um anti-herói emblemático.


      Ao seu fim, o longa pincela sobre o uso das drogas usadas moderadamente, pois a mente humana já está doente demais, sendo um retrato de uma sociedade corruptiva (ou vice-versa). Mojica encerra sua obra com uma canção retratada no começo do mesmo: Guerra, de De Kalafe e A Turma. "Paz, paz, paz, eu sei não há mais, mas tento esquecer que vamos morrer, morrer muito cedo por causa do medo, por causa de loucos que eu sei não são poucos, que querem assim pra todos um fim, por meio da guerra fazendo varrer da face da terra tudo que existe, meu Deus vai ser triste”.



terça-feira, 31 de outubro de 2017

Ônibus 174

Direção: José Padilha e Felipe Lacerda, 2002)
O ano de 1993 foi marcado por dois grandes acontecimentos na história do Brasil: o primeiro, dia 14 de outubro, no Rio Grande do Sul, eu nascia; o segundo, dia 23 de julho, no Rio de Janeiro, oito jovens moradores de rua foram assassinados por policiais militares na calada da noite, em frente a Igreja da Candelária que deu nome à Chacina.

Sete anos mais tarde, dia 12 de junho de 2000, o mesmo Rio de Janeiro é foco da imprensa nacional durante o sequestro de um ônibus: um homem entrou no ônibus, fez alguns reféns e tomou o veículo para si durante quase cinco horas numa interminável tarde de segunda-feira. O Rodrigo de sete anos não fazia ideia do que acontecia, e anos mais tarde não se lembraria muita coisa além de um crime envolvendo um ônibus. E também não teria o conhecimento que a Chacina da Candelária estaria intrínseca no sequestro.

Ônibus 174 é resultado de uma investigação, contendo imagens de arquivo da imprensa que noticiou o caso, entrevistas com alguns envolvidos (como reféns, policiais e conhecidos do sequestrador) e documentos oficiais. Com duas horas de duração, o documentário interliga vários pontos, do começo da cobertura da imprensa até a emblemática resolução do crime, trazendo depoimentos cruciais para entender um pouco da importância e da marca que o sequestro deixou no país. Infelizmente, 17 anos depois, quase nada mudou.

José Padilha é um ótimo cineasta e o reconhecemos por trás de Tropa de Elite (2007 - 2010). A fama do primeiro Tropa se deve a muitas coisas, e uma delas é o personagem de Wagner Moura como Capitão Nascimento, que visa acabar com a criminalidade a qualquer custo, mesmo com meios cruéis e ilegais. Nascimento foi a voz de uma parcela da população que quis ter assassinado com suas próprias mãos Sandro Barbosa do Nascimento (que ironia).

      Quandro criança, Sandro presenciou o assassinato de sua mãe, e não conhecendo o seu pai, acabou fugindo do seu núcleo familiar (sua tia) e foi morar nas ruas. Uma criança recém chegada nas ruas, ou tenta sobreviver pedindo esmola e roubando, ou morre. Sandro persistiu nas ruas durante muito tempo, mas a sua adolescência foi muito mais conturbada do que se poderia imaginar. Longe de Hollywood com John Hughes suas comédias brancas sobre a dificuldade de ser entendido enquanto adolescente, com 15 anos Sandro presenciou a morte de oito amigos durante a noite de 23 de julho de 1993.

      Sobrevivente da Chacina da Candelária, o garoto frequentou grupos de capoeira enquanto continuava morando nas ruas, mas devido ao frequente uso de cola e outras drogas, adentrou para o crime realizando pequenos delitos para manter seu vício e sobreviver. A partir disso, foi detido e preso algumas vezes, sempre conseguindo fugir para as ruas, até o fatídico dia dos anos 2000. Com a visão da morte de sua mãe na cabeça, as sombras de seus colegas assassinados ao seu redor e a difícil sobrevivência nas ruas, Sandro se vê sequestrando um ônibus numa tarde de segunda feira, empunhando um revólver que apontava para os reféns frequentemente. Apenas para contar, resumidamente, a história do Sandro até o reconhecimento nacional, que é ilustrada no documentário com depoimentos de amigos de rua, familiares e conhecidos. 

   

      O rapaz ganha nome devido a gravidade de seu crime e a grande cobertura nacional do ocorrido, mas estava encurralado e não tinha nada a perder após o caso. Com 21 anos, Sandro é o reflexo de nossa sociedade, que após tanto sofrimento não viu mais saída alguma. No documentário, mais de uma vez é dito que a felicidade ali (para moradores de rua) não existe mais, e que é melhor estar morto do que estar preso junto com outras dezenas de homens. Sandro, negro e jovem, não tendo a quem recorrer para ajudá-lo (quem daria um emprego para alguém que não sabe ler, escrever, não tem casa e carteira de emprego?), foi preso e não aprendeu com isso. Ainda no documentário é dito diversas vezes que a prisão, no Brasil, só piora o bandido, que sai dela tendo mais raiva do mundo e não tendo aprendido nada de bom fora da vida do crime.

      Um ser invisível na sociedade, abandonado, teve um nome quando cometeu um crime: antes disso era ninguém. Com reféns na mira e toda a mídia nacional em cima de seu ônibus, Sandro era o astro do dia. Com o poder em suas mãos em forma de revólver, ditava as regras: os reféns deveriam parecer mais assustados do que estavam, pois não queria matar ninguém realmente. Mas lá fora, os policiais, a população e a mídia não sabiam disso. E tampouco os reféns poderiam ter certeza. A qualquer movimento em falso (da polícia ou dos reféns), outra chacina carioca poderia se concretizar. O dia 12 de junho de 2000 terminou com duas mortes em rede nacional. Parte dos brasileiros gostaria de ter arrancado um pedaço da carne de Sandro para guardar de recordação do dia em que o ódio e o preconceito falou alto demais. Esse dia perdura até hoje, sem transmissão ao vivo, mas com a mesma sensação de que tem muita coisa errada. 

      Ônibus 174 retrata sequestro um tanto quanto bagunçado, por parte de Sandro que não sabia muito bem o que queria, e por parte dos policiais que não sabiam muito bem como agir e não tinham equipamentos necessários para aquele tipo de operação, e que quase vinte anos depois, reflete bastante o pensamento de grande parte dos brasileiros. Ao mesmo tempo em que o documentário não julga os atos, ele nos dá a oportunidade de compreender muita coisa, o que é de suma importância para o desenrolar do caso e a emblemática simbologia dele.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Bingo: O Rei das Manhãs

Direção: Daniel Rezende, 2017.
Bingo é, provavelmente, o filme que melhor retrata um pouco dos anos 80 no Brasil.

Bingo também é, nada mais do que o palhaço Bozo, que por questão de direitos autorais tiveram que modificar o nome. O palhaço Bozo é uma criação norte-americana e que foi trazida pra cá no início dos anos 80, sendo um programa matinal que transmitia desenhos animados para as crianças. O que o filme nos traz é um recorte da história do Bozo no Brasil (que existiram vários), mais especificamente a história de Arlindo Barreto, um dos homens por trás da máscara.

É o filme de estreia na direção de Daniel Rezende, mas ele já fez excelentes trabalhos como montador: Cidade de Deus (2002); Narradores de Javé (2004); Tropa de Elite (1, 2007 e 2, 2010); The Three of Life (2011); e Robocop (2014). E em Bingo, ele fez questão de montar apenas o trailer, enquanto focava o longa todo em sua direção. Rezende traz uma direção bem pop para Bingo, algo que vimos com os já citados Cidade de Deus e Tropa de Elite, mas não visto em uma biografia ainda.

 A cultura pop brasileira dos anos 80 está nostalgicamente vibrante no filme. Até pra quem não viveu nessa década (meu caso) pode se encantar com as músicas, cores, figurinos e objetos da época. No meu caso, mesmo não vivendo a década, acabei incorporando um carinho imenso pelos anos 80, primeiramente na questão musical em casa (que havia uma coletânea da Som Livre com pop/rock nacional da década), e também por um trabalho realizado durante um ano letivo inteiro sobre os anos 80 (fui um dos responsáveis a falar sobre a música, além de dançar Michael Jackson, Menudo e o clássico Footloose).

Além de todo figurino brega oitentista e as cores neons que nos acostumamos hoje, a trilha sonora de Bingo é incrível. Incrível pois traz os anos 80 para o Brasil, e não com músicas gringas hispter. É o pop/rock nostálgico que toca nos bailes de reencontro, com Metrô, Dr. Silvana & Cia, Ritchie, Titãs e Roupa Nova. Música que, se fossem em inglês todo mundo adoraria e estaria no próximo Guardians of the Galaxy (2014 e 2017).

Talvez o ponto mais popular na cultura brasileira dos anos 80 seja a televisão. Enquanto o cinema nacional estava em queda, muito por conta da censura vinda da Ditadura e da violência aumentando nos grandes centros urbanos, o conteúdo vindo da televisão vinha crescendo. O cinema se sustentava com as pornochanchadas, que são filmes eróticos (não pornôs, como temos hoje), e a TV lucrava com as novelas de horário nobre. E Bingo acaba retratando esses dois lados do audiovisual brasileiro nessa década.

Arlindo Barreto, em Bingo virou Augusto Mendes (Vladimir Brichta), e foi um ator de filmes de pornochanchada, que o filme nos traz logo no início juntamente com a relação com seu filho. Após tentar alguns papéis em novelas, Augusto conseguiu passar nos testes e ser contratado para ser o Bingo num programa matinal. Porém, Augusto nem ninguém podia revelar a identidade do palhaço, sendo reconhecido somente com sua máscara (que seria o nariz, a menor máscara do mundo, segundo o finado Domingos Montagner).

A emissora líder de audiência pela manhã nos anos 80 era a Globo. Nosso querido Silvio Santos conseguiu importar o personagem Bozo para sua emissora, o SBT, e isso gerou uma enorme briga pela audiência nas manhãs da televisão brasileira. Bingo nos retrata um pouco disso: como Augusto reformulou o palhaço careta da gringa para o jeitinho brasileiro que estava com uma grande liberdade de expressão, algo que não se via em décadas. Augusto, tendo um filho da idade que assistia os programas matinais, sabia se portar diante da criançada, mas também era inovador e sonhador, que trouxe a interação com o público através do telefone e queria a todo custo passar a Globo no ibope matinal. Bozo, ou Bingo, trouxe também a já conhecida Gretchen (Emanuelle Araújo) para o programa infantil, dançando, seminua, para o Brasil inteiro de manhã.

Falando em crianças, já citei que Augusto tinha um filho, Gabriel (Cauã Martins), e Rezende explora bastante a relação de Augusto com ele. Pode ser bastante clichê (como a cena dois dos de carro da praia), e até forçada (como os diversos telefonemas em que o pai não atendeu), mas que foi importante para o personagem na vida real. Uma cena muito marcante do filme (e da vida de Barreto), foi uma ligação do filho para o programa, onde Gabriel diz que "você é o único pai que brinca com todas as crianças, menos comigo". Particularmente, eu gostei da relação, e principalmente da variedade de atuações do Vladimir Brichta, que consegue ir de um palhaço louco de cocaína para um pai atencioso e preocupado. Há também a relação de Augusto com a mãe, vivida em Bingo pela grandiosa Ana Lúcia Torre, que faz uma espécie de Norma Desmond (Sunset Blvd., 1950).



Com toda a fama e ibope que Bingo conseguiu, Augusto arrecadou muito dinheiro e acabou usufruindo de muitas drogas enquanto animava a criançada de manhã. É também um pouco clichê de uma biografia o protagonista sair do auge e cair num abismo de tristeza e desilusão. Mas ainda assim, mesclada com todo o contexto cultural paulista dos anos 80, o vício em cocaína de Augusto consegue retratar um pouco da loucura que foi esta década. 

Gostaria ainda de destacar algumas cenas em que Rezende e toda a equipe conseguem trazer um toque a mais na biografia do palhaço mais tenebroso que Pennywise. A primeira é no começo do filme, e já citei também, quando Augusto e Gabriel estão passeando pela praia e dão "zerinhos" com o carro (lembrando Os Cafajestes, 1962, de Ruy Guerra). Outra cena é o plano sequência de Bingo e toda a equipe de produção durante o programa: todo o jogo de câmera e coordenação dos personagens é algo que não vemos por trás das câmeras da TV. Mais para a metade do filme, com Bingo já nas drogas, temos um programa em que ele está alteradíssimo devido a cocaína, e coloca mais medo nas crianças que qualquer palhaço por aí. Rezende ainda nos trás uma simples, mas bonita tomada de Augusto, que após ter o conhecimento de sua demissão, vai embora da emissora coma as luzes se apagando enquanto passa: aqui, Bingo, de Augusto, adormece com as luzes. Quase finalizando o filme, Augusto surta em sua casa dando um belo soco em sua televisão, na qual refletia a imagem de Bingo em vez da de Augusto.

São cenas que, além do já mencionado Daniel Rezende, merecem o reconhecimento do grande de ator que é Vladimir Brichta. Passando por todos os fanfarrões e galanteadores (ainda assim, trazendo a essência) que já protagonizou, Vladimir vive Augusto em sua forma de pai e filho, e ele é a "porra do Bingo, caralho" (frase citada no filme lembrada num trailer/making off com Wagner Moura). Vladimir é a porra do Bingo, e o Augusto, e ainda dou graças a Netflix por ter segurado Wagner Moura mais um tempo, pois o personagem do Bingo foi escrito para ele. Brichta arrasa no papel, e é muito bom ser surpreendido por nomes que só vemos nas novelas.

O Rei das Manhãs traz um pouco da experiência do que foi os anos 80 no Brasil, e principalmente no que se refere a cultura pop, da música ou TV. E até para quem não viveu a década o filme funciona muito bem, pois representa um pouco do que foi a infância dos nossos pais. Ou até mais que isso, pois o programa louco do Bozo repercutiu em toda a nossa sociedade, e nos programas televisivos que encontramos nos anos 90. Hoje, realmente é impensável trazer um personagem nesse nível de volta para as crianças, até por isso que Patati e Patata deram certo, conseguindo conversar com as crianças sem preocupar os pais com piadas de baixo calão ou mulheres seminuas na tela.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Central

Documentário. Dirigido por Tatiana Sager, 2017.
Um documentário brasileiro dirigido por uma mulher,  que relata um pouco da vivência dos detentos do presídio Central, em Porto Alegre, e do complexo esquema que é mantido para ele ficar de pé.
Importante para caralho, o documentário traz uma mescla de Carandiru (2003), Tropa de Elite (2007) e alguns traços de Orange Is The New Black (2013-), mas com entrevistas reais de promotores, juízes, ex-detentos e policiais que lá trabalham. Enquanto as outras obras citadas são ficções baseadas numa realidade, Central, sendo um documentário, tem outro propósito: tem um compromisso maior com a realidade. Aqui já caberia um debate sobre o que é a verdade, a realidade, se ela existe, ou o que existe são apenas fragmentos de histórias.... Enfim, as entrevistas e imagens de dentro do presídio, de forma documental, corroboram com a realidade (ou parte dela) do Central.
Há quase dez anos o presídio foi considerado como o pior do Brasil pela CPI do Sistema Carcerário, e agora, 2017, após um começo de ano turbulento por conta por conta das rebeliões em presídios pelo Brasil, esse documentário é lançado, nos mostrando um pouco do contexto em que essas rebeliões aconteceram. Não é esse o propósito dele, mas dá para fazer essa ponte claramente.
Com as entrevistas, o documentário traz várias reflexões para nós, que já são feita por alguns, mas outros ainda não enxergam outras visões de mundo. Do início ao fim, Central nos é apresentado como um local para abrigar o que a sociedade rejeitou, um local de exclusão dos pobres, pois jamais uma pessoa rica, de bens e posses, ficou encarcerada lá dentro (vide depoimento de um teólogo). Porém, essas pessoas são fruto dessa mesma sociedade que os rejeita, e algumas pessoas não enxergam ou ignoram isso.
Em várias partes do documentário é falado que nenhum preso que entra ali sai para se ressocializar com o mundo: uns vão para a internação pelo uso de drogas, alguns tentam encontrar um emprego, mas encontram dificuldade em serem aceitos por carregarem o sobrenome “Ex-Detento”, e outros ainda voltam direto para o crime, pois possuem dívidas com as facções criminosas do Central.
É de conhecimento geral, por meio de investigações e relatos, que o crime organizado no Brasil possui esquemas e acordos com o Estado, ou com os agentes que o servem, como a polícia. Aqui no documentário, essa informação só é negada pelos próprios policias, pois se confessassem eles estariam sendo cúmplices do crime organizado. E é assim que o Central funciona, com as facções agindo dentro e fora dele, e a polícia servindo ao Estado e ao Crime (deixando entrar dinheiro, celulares, drogas.... quando lhes convém).
Detentos que vivem como lixo humano, expostos ao esgoto, com alimentação inadequada e falta de espaço físico: um presídio que era para comportar menos de dois mil homens, possui quase cinco mil ao todo. Com falta de verba do governo para a manutenção do Central, para comida e equipes de saúde, as facções dão o seu jeito de conseguir alimento e a própria segurança de seus membros.
O Central ficou bem conhecido no Brasil na década de 1990, por conta de inúmeras fugas e rebeliões que ocorreram nele, tendo até um trecho de uma rebelião com reféns no documentário, que chega a ser assustador quando estamos acostumados com cenas daquelas apenas na ficção. Anos depois, as rebeliões, fugas, mortes e torturas dentro do presídio diminuíram drasticamente por conta de acordos feitos entre as facções. Contudo, as mesmas facções que comandam as ruas estão no Central também, e as dívidas adquiridas dentro dele serão cobradas lá fora, para não “chamar muita atenção” da população e das autoridades para dentro do presídio.
São informações que muitos já conhecem, vindas muitas vezes da ficção, como as obras citadas no início, e que aqui ganham muito peso por estarem sendo corroboradas com relatos e testemunhos de quem vivencia ou vivenciou um pouco daquela realidade. Além dessas que abordei, o documentário traz muito mais sobre o dia a dia dos seis pavilhões que compõe o presídio, e as conexões das facções do Central nas ruas e no próprio presídio.

Central é sobre um único presídio, mas que tem muito em comum com o Brasil todo. Gostaria ainda de deixar uma frase que finaliza o documentário: Só os fortes sobrevivem, pros fracos não dá tempo.