quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Bingo: O Rei das Manhãs

Direção: Daniel Rezende, 2017.
Bingo é, provavelmente, o filme que melhor retrata um pouco dos anos 80 no Brasil.

Bingo também é, nada mais do que o palhaço Bozo, que por questão de direitos autorais tiveram que modificar o nome. O palhaço Bozo é uma criação norte-americana e que foi trazida pra cá no início dos anos 80, sendo um programa matinal que transmitia desenhos animados para as crianças. O que o filme nos traz é um recorte da história do Bozo no Brasil (que existiram vários), mais especificamente a história de Arlindo Barreto, um dos homens por trás da máscara.

É o filme de estreia na direção de Daniel Rezende, mas ele já fez excelentes trabalhos como montador: Cidade de Deus (2002); Narradores de Javé (2004); Tropa de Elite (1, 2007 e 2, 2010); The Three of Life (2011); e Robocop (2014). E em Bingo, ele fez questão de montar apenas o trailer, enquanto focava o longa todo em sua direção. Rezende traz uma direção bem pop para Bingo, algo que vimos com os já citados Cidade de Deus e Tropa de Elite, mas não visto em uma biografia ainda.

 A cultura pop brasileira dos anos 80 está nostalgicamente vibrante no filme. Até pra quem não viveu nessa década (meu caso) pode se encantar com as músicas, cores, figurinos e objetos da época. No meu caso, mesmo não vivendo a década, acabei incorporando um carinho imenso pelos anos 80, primeiramente na questão musical em casa (que havia uma coletânea da Som Livre com pop/rock nacional da década), e também por um trabalho realizado durante um ano letivo inteiro sobre os anos 80 (fui um dos responsáveis a falar sobre a música, além de dançar Michael Jackson, Menudo e o clássico Footloose).

Além de todo figurino brega oitentista e as cores neons que nos acostumamos hoje, a trilha sonora de Bingo é incrível. Incrível pois traz os anos 80 para o Brasil, e não com músicas gringas hispter. É o pop/rock nostálgico que toca nos bailes de reencontro, com Metrô, Dr. Silvana & Cia, Ritchie, Titãs e Roupa Nova. Música que, se fossem em inglês todo mundo adoraria e estaria no próximo Guardians of the Galaxy (2014 e 2017).

Talvez o ponto mais popular na cultura brasileira dos anos 80 seja a televisão. Enquanto o cinema nacional estava em queda, muito por conta da censura vinda da Ditadura e da violência aumentando nos grandes centros urbanos, o conteúdo vindo da televisão vinha crescendo. O cinema se sustentava com as pornochanchadas, que são filmes eróticos (não pornôs, como temos hoje), e a TV lucrava com as novelas de horário nobre. E Bingo acaba retratando esses dois lados do audiovisual brasileiro nessa década.

Arlindo Barreto, em Bingo virou Augusto Mendes (Vladimir Brichta), e foi um ator de filmes de pornochanchada, que o filme nos traz logo no início juntamente com a relação com seu filho. Após tentar alguns papéis em novelas, Augusto conseguiu passar nos testes e ser contratado para ser o Bingo num programa matinal. Porém, Augusto nem ninguém podia revelar a identidade do palhaço, sendo reconhecido somente com sua máscara (que seria o nariz, a menor máscara do mundo, segundo o finado Domingos Montagner).

A emissora líder de audiência pela manhã nos anos 80 era a Globo. Nosso querido Silvio Santos conseguiu importar o personagem Bozo para sua emissora, o SBT, e isso gerou uma enorme briga pela audiência nas manhãs da televisão brasileira. Bingo nos retrata um pouco disso: como Augusto reformulou o palhaço careta da gringa para o jeitinho brasileiro que estava com uma grande liberdade de expressão, algo que não se via em décadas. Augusto, tendo um filho da idade que assistia os programas matinais, sabia se portar diante da criançada, mas também era inovador e sonhador, que trouxe a interação com o público através do telefone e queria a todo custo passar a Globo no ibope matinal. Bozo, ou Bingo, trouxe também a já conhecida Gretchen (Emanuelle Araújo) para o programa infantil, dançando, seminua, para o Brasil inteiro de manhã.

Falando em crianças, já citei que Augusto tinha um filho, Gabriel (Cauã Martins), e Rezende explora bastante a relação de Augusto com ele. Pode ser bastante clichê (como a cena dois dos de carro da praia), e até forçada (como os diversos telefonemas em que o pai não atendeu), mas que foi importante para o personagem na vida real. Uma cena muito marcante do filme (e da vida de Barreto), foi uma ligação do filho para o programa, onde Gabriel diz que "você é o único pai que brinca com todas as crianças, menos comigo". Particularmente, eu gostei da relação, e principalmente da variedade de atuações do Vladimir Brichta, que consegue ir de um palhaço louco de cocaína para um pai atencioso e preocupado. Há também a relação de Augusto com a mãe, vivida em Bingo pela grandiosa Ana Lúcia Torre, que faz uma espécie de Norma Desmond (Sunset Blvd., 1950).



Com toda a fama e ibope que Bingo conseguiu, Augusto arrecadou muito dinheiro e acabou usufruindo de muitas drogas enquanto animava a criançada de manhã. É também um pouco clichê de uma biografia o protagonista sair do auge e cair num abismo de tristeza e desilusão. Mas ainda assim, mesclada com todo o contexto cultural paulista dos anos 80, o vício em cocaína de Augusto consegue retratar um pouco da loucura que foi esta década. 

Gostaria ainda de destacar algumas cenas em que Rezende e toda a equipe conseguem trazer um toque a mais na biografia do palhaço mais tenebroso que Pennywise. A primeira é no começo do filme, e já citei também, quando Augusto e Gabriel estão passeando pela praia e dão "zerinhos" com o carro (lembrando Os Cafajestes, 1962, de Ruy Guerra). Outra cena é o plano sequência de Bingo e toda a equipe de produção durante o programa: todo o jogo de câmera e coordenação dos personagens é algo que não vemos por trás das câmeras da TV. Mais para a metade do filme, com Bingo já nas drogas, temos um programa em que ele está alteradíssimo devido a cocaína, e coloca mais medo nas crianças que qualquer palhaço por aí. Rezende ainda nos trás uma simples, mas bonita tomada de Augusto, que após ter o conhecimento de sua demissão, vai embora da emissora coma as luzes se apagando enquanto passa: aqui, Bingo, de Augusto, adormece com as luzes. Quase finalizando o filme, Augusto surta em sua casa dando um belo soco em sua televisão, na qual refletia a imagem de Bingo em vez da de Augusto.

São cenas que, além do já mencionado Daniel Rezende, merecem o reconhecimento do grande de ator que é Vladimir Brichta. Passando por todos os fanfarrões e galanteadores (ainda assim, trazendo a essência) que já protagonizou, Vladimir vive Augusto em sua forma de pai e filho, e ele é a "porra do Bingo, caralho" (frase citada no filme lembrada num trailer/making off com Wagner Moura). Vladimir é a porra do Bingo, e o Augusto, e ainda dou graças a Netflix por ter segurado Wagner Moura mais um tempo, pois o personagem do Bingo foi escrito para ele. Brichta arrasa no papel, e é muito bom ser surpreendido por nomes que só vemos nas novelas.

O Rei das Manhãs traz um pouco da experiência do que foi os anos 80 no Brasil, e principalmente no que se refere a cultura pop, da música ou TV. E até para quem não viveu a década o filme funciona muito bem, pois representa um pouco do que foi a infância dos nossos pais. Ou até mais que isso, pois o programa louco do Bozo repercutiu em toda a nossa sociedade, e nos programas televisivos que encontramos nos anos 90. Hoje, realmente é impensável trazer um personagem nesse nível de volta para as crianças, até por isso que Patati e Patata deram certo, conseguindo conversar com as crianças sem preocupar os pais com piadas de baixo calão ou mulheres seminuas na tela.

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