terça-feira, 31 de outubro de 2017

Ônibus 174

Direção: José Padilha e Felipe Lacerda, 2002)
O ano de 1993 foi marcado por dois grandes acontecimentos na história do Brasil: o primeiro, dia 14 de outubro, no Rio Grande do Sul, eu nascia; o segundo, dia 23 de julho, no Rio de Janeiro, oito jovens moradores de rua foram assassinados por policiais militares na calada da noite, em frente a Igreja da Candelária que deu nome à Chacina.

Sete anos mais tarde, dia 12 de junho de 2000, o mesmo Rio de Janeiro é foco da imprensa nacional durante o sequestro de um ônibus: um homem entrou no ônibus, fez alguns reféns e tomou o veículo para si durante quase cinco horas numa interminável tarde de segunda-feira. O Rodrigo de sete anos não fazia ideia do que acontecia, e anos mais tarde não se lembraria muita coisa além de um crime envolvendo um ônibus. E também não teria o conhecimento que a Chacina da Candelária estaria intrínseca no sequestro.

Ônibus 174 é resultado de uma investigação, contendo imagens de arquivo da imprensa que noticiou o caso, entrevistas com alguns envolvidos (como reféns, policiais e conhecidos do sequestrador) e documentos oficiais. Com duas horas de duração, o documentário interliga vários pontos, do começo da cobertura da imprensa até a emblemática resolução do crime, trazendo depoimentos cruciais para entender um pouco da importância e da marca que o sequestro deixou no país. Infelizmente, 17 anos depois, quase nada mudou.

José Padilha é um ótimo cineasta e o reconhecemos por trás de Tropa de Elite (2007 - 2010). A fama do primeiro Tropa se deve a muitas coisas, e uma delas é o personagem de Wagner Moura como Capitão Nascimento, que visa acabar com a criminalidade a qualquer custo, mesmo com meios cruéis e ilegais. Nascimento foi a voz de uma parcela da população que quis ter assassinado com suas próprias mãos Sandro Barbosa do Nascimento (que ironia).

      Quandro criança, Sandro presenciou o assassinato de sua mãe, e não conhecendo o seu pai, acabou fugindo do seu núcleo familiar (sua tia) e foi morar nas ruas. Uma criança recém chegada nas ruas, ou tenta sobreviver pedindo esmola e roubando, ou morre. Sandro persistiu nas ruas durante muito tempo, mas a sua adolescência foi muito mais conturbada do que se poderia imaginar. Longe de Hollywood com John Hughes suas comédias brancas sobre a dificuldade de ser entendido enquanto adolescente, com 15 anos Sandro presenciou a morte de oito amigos durante a noite de 23 de julho de 1993.

      Sobrevivente da Chacina da Candelária, o garoto frequentou grupos de capoeira enquanto continuava morando nas ruas, mas devido ao frequente uso de cola e outras drogas, adentrou para o crime realizando pequenos delitos para manter seu vício e sobreviver. A partir disso, foi detido e preso algumas vezes, sempre conseguindo fugir para as ruas, até o fatídico dia dos anos 2000. Com a visão da morte de sua mãe na cabeça, as sombras de seus colegas assassinados ao seu redor e a difícil sobrevivência nas ruas, Sandro se vê sequestrando um ônibus numa tarde de segunda feira, empunhando um revólver que apontava para os reféns frequentemente. Apenas para contar, resumidamente, a história do Sandro até o reconhecimento nacional, que é ilustrada no documentário com depoimentos de amigos de rua, familiares e conhecidos. 

   

      O rapaz ganha nome devido a gravidade de seu crime e a grande cobertura nacional do ocorrido, mas estava encurralado e não tinha nada a perder após o caso. Com 21 anos, Sandro é o reflexo de nossa sociedade, que após tanto sofrimento não viu mais saída alguma. No documentário, mais de uma vez é dito que a felicidade ali (para moradores de rua) não existe mais, e que é melhor estar morto do que estar preso junto com outras dezenas de homens. Sandro, negro e jovem, não tendo a quem recorrer para ajudá-lo (quem daria um emprego para alguém que não sabe ler, escrever, não tem casa e carteira de emprego?), foi preso e não aprendeu com isso. Ainda no documentário é dito diversas vezes que a prisão, no Brasil, só piora o bandido, que sai dela tendo mais raiva do mundo e não tendo aprendido nada de bom fora da vida do crime.

      Um ser invisível na sociedade, abandonado, teve um nome quando cometeu um crime: antes disso era ninguém. Com reféns na mira e toda a mídia nacional em cima de seu ônibus, Sandro era o astro do dia. Com o poder em suas mãos em forma de revólver, ditava as regras: os reféns deveriam parecer mais assustados do que estavam, pois não queria matar ninguém realmente. Mas lá fora, os policiais, a população e a mídia não sabiam disso. E tampouco os reféns poderiam ter certeza. A qualquer movimento em falso (da polícia ou dos reféns), outra chacina carioca poderia se concretizar. O dia 12 de junho de 2000 terminou com duas mortes em rede nacional. Parte dos brasileiros gostaria de ter arrancado um pedaço da carne de Sandro para guardar de recordação do dia em que o ódio e o preconceito falou alto demais. Esse dia perdura até hoje, sem transmissão ao vivo, mas com a mesma sensação de que tem muita coisa errada. 

      Ônibus 174 retrata sequestro um tanto quanto bagunçado, por parte de Sandro que não sabia muito bem o que queria, e por parte dos policiais que não sabiam muito bem como agir e não tinham equipamentos necessários para aquele tipo de operação, e que quase vinte anos depois, reflete bastante o pensamento de grande parte dos brasileiros. Ao mesmo tempo em que o documentário não julga os atos, ele nos dá a oportunidade de compreender muita coisa, o que é de suma importância para o desenrolar do caso e a emblemática simbologia dele.