segunda-feira, 16 de abril de 2018

Limite

Direção: Mário Peixoto, 1931.
Quase noventa anos desde sua estreia, continua sendo o filme brasileiro mais importante em vários aspectos. Foi eleito em 1988 pela Cinemateca Brasileira como o melhor filme já feito no Brasil, e em 2016 ficou em primeiro lugar na lista dos 100 Melhores Filmes Brasileiros feita pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), superando Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Eduardo Coutinho, Walter Salles e muita gente.

Mário é, antes de tudo, um escritor. Escrevia em seu diário os seus pensamentos mais particulares, e em outros papéis escrevia ideias que viraram livros. Filme mesmo, fez só um: Limite; mas deixou quase dez inacabados. Vindo de uma família rica, o garoto que vivia no Rio de Janeiro foi estudar na Inglaterra, e lá teve grande contato com o cinema: viu de Buster Keaton à Fritz Lang. Foi em outras terras, ainda, que viu num jornal a imagem base para seu primeiro e único filme: a imagem de uma mulher envolta nos braços algemados de um homem. Voltando ao Brasil com quase vinte anos, resolveu filmar o que conseguiu escrever sobre a imagem que martelou sua cabeça por tanto tempo na Europa.

Abastada, sua família possuía terras, e uma em particular é relevante para esta história: uma fazenda em Mangaratiba, litoral do Rio de Janeiro. Foi lá que durante meses, Mário, o diretor de fotografia Edgar Brasil, os atores e toda a produção do filme ficaram confinados até a finalização de Limite. 

      Mas vamos ao filme em si. Ele conta a história de três pessoas, duas mulheres e um homem, náufragos, que estão numa pequena embarcação no meio do mar. Perdidos, sem saber o que fazer, relembram suas histórias e compartilham conosco. É uma filme não linear: começamos no barco, vemos a história de um, voltamos pro barco, etc. É um filme brasileiro, mudo e em preto e branco.

      Nessas histórias que são contadas, Peixoto e Brasil fazem magia com a câmera. Enquanto Mário criava as cenas em sua cabeça, Edgar tentava elaborar maneiras de filmar tudo aquilo numa cidadezinha brasileira em 1930. São pequenas-grandes cenas de contemplação do tempo, da poesia que Limite consegue transmitir para quem assiste. O filme todo é recheado de cenas que podem incomodar bastante a maioria dos espectadores do longa (até por isso não foi um sucesso de público, tendo sido esquecido pelo tempo e quase perdido por completo as suas imagens), pois possuem uma duração maior do que estamos acostumados com o cinema atual. Com toda a correria da vida moderna, a velocidade e nossa cabeça sempre cheia de pensamentos, ver Limite pode causar muita estranheza com toda a calmaria do mar, o close nas pessoas e objetos e a história que parece não chegar em nada quando estamos acostumados com todas as reviravoltas e explosões atuais.

      As engenhosidades dessa dupla nos apresentam cenas incríveis, como a própria ideia do filme com a imagem da mulher. Durante a primeira história contada, há uma cena na qual uma mulher caminha pela rua, e a câmera, estática, vê a mulher se distanciando, e após ela sumir, começa a filmar, caminhando, a ponta das telhas de uma casa, como se estivesse com a cabeça para o alto, e em seguida, árvores. A dupla abusa do foco, principalmente em objetos redondos, como a roda de um trem, um botão, um cesto e bocas, assim como Hitchcock fez em vários de seus filmes, incluindo Psicose (1960). Mas o que eu acho mais bonito no filme todo, é a movimentação de câmera que rodeia os personagens. E a montagem, que faz o filme se movimentar e nos agraciar com a cena do filme do Chaplin, por exemplo. 



      Limite é um filme experimental. Dirigido por um jovem criativo com muitas ideias na cabeça, pulou fora da caixa de todas as comédias mudas norte-americanas e fugia até do expressionismo alemão - embora tenha referências. Cacá Diegues diz, no documentário Onde a Terra Acaba (2002), que "O filme do Mário me dava a exata dimensão de para onde teria ido o cinema se o som não tivesse acontecido. [...] Até hoje não consegui entender como é que um menino, no Brasil, acompanhado de Edgar Brasil, conseguiu fazer num país que não tinha tradição cinematográfica, um filme que fosse dar uma síntese de tudo o que tava acontecendo, e a direção de para onde o cinema iria. O cinema de Limite é um cinema que vai ficar perdido no tempo como uma possibilidade que o cinema não realizou."

      Por muito pouco Limite não foi perdido por completo. Na versão atual, recuperada nos 70, há uma parte faltante no início do filme, e podemos ver que a qualidade da imagem decai bastante por alguns minutos com aquelas manchas características. Felizmente conseguiram recuperar a maior parte desta obra, e hoje, Limite, não é só uma lenda. É uma referência do cinema nacional e mundial, de muita inovação e contemplação do tempo. No final, existem seis minutos de admiração do mar, agitado e calmo, como nossas vidas.

segunda-feira, 26 de março de 2018

Pixote: A Lei Que Matou O Mais Fraco

Direção: Hector Babenco, 1980.
Fernando Ramos da Silva foi assassinado pela polícia em 1987, sete anos após estrelar Pixote, A Lei Do Mais Fraco (1980, Hector Babenco), quando tinha doze anos. Com dezenove, com uma mulher, uma filha pequena e um rosto marcado pelo crime, Fernando foi executado com oito tiros à queima roupa.

Babenco, argentino de nascimento mas brasileiro de coração, é reconhecido internacionalmente pelo Beijo da Mulher Aranha (1985), sendo indicado para quatro Oscars (inclusive melhor Filme e Direção). Em território nacional, Héctor é mais conhecido pelo longa Carandiru (2003), que retrata um pouco dos últimos dias de um dos mais emblemáticos presídios brasileiros. Carandiru herda bastante da bagagem de Pixote. Quando criança, Pixote foi apreendido e levado para um reformatório, e lá conviveu com muita gente que não encontrou outra oportunidade para sobreviver além do crime. Nesta sua nova moradia, o garoto fez amigos, brincou de assaltar bancos e usou drogas que entravam facilmente no estabelecimento. Pixote, assim como muitas crianças brasileiras da década de 80 e de hoje, conviveu com referências e exemplos ruins, e isso marcou a sua vida dali em diante.

Um dos amigos de Pixote era Lilica, um rapaz homossexual com quase 18 anos, que já possuía uma história nas ruas de São Paulo. Após certos acontecimentos, Pixote, Lilica e mais dois colegas conseguem escapar do reformatório e passam a viver nas ruas. Mas o que 4 menores de idade poderiam fazer para sobreviver? Roubar, claro, já que ninguém olha nem olhou para eles. A Lei do Mais Fraco consegue retratar bem a marginalização das zonas urbanas no Brasil, e toda a crueldade que reside nelas e nos reformatórios. Crianças pobres, abandonadas pela humanidade, vivendo num presídio-mirim, como se a turbulenta transição que nossos corpos sofrem entre a infância e a adolescência já não bastasse, o convívio com autoridades que só os colocam no chão piora tudo.

      Não poderia passar em branco a linda mensagem de Lilica, "O que poderia esperar uma bicha da vida?", quando desabafa para seus amigos sobre ser um maior de idade, homossexual e sem uma estrutura de vida fora das ruas. O filme ainda tem a ilustre presença de Marília Pera, no papel de uma prostituta-mãe para Pixote.


Direção: José Joffily, 1996.
Dezesseis anos após Pixote, A Lei do Mais Fraco, e quase dez anos após a morte de Fernando, o diretor José Joffily traz uma obra de ficção tentando contar um pouco da história do garoto, desde o início de sua fama com Pixote, até o seu trágico fim. O menino foi da sombra à luz, conquistando o patrimônio de uma casa para sua família com o que rendeu do filme de Babenco. Conseguiu alguns trabalhos pequenos no cinema e na TV após a fama, mas nunca engajou uma sequência grande de trabalhos, muito por conta da sua falta de dedicação e por ser semi-alfabeto, tendo dificuldade para decorar os textos.

"Por se tratar de um filme de ficção, foi feita uma dramtatização de alguns personagens e acontecimentos.", é dito ao público ao final do filme. O que é bem visível com o desenrolar da história. Fernando vive  num local pequeno e pobre de Diadema, com sua mãe e irmãos: dois rapazes que ganham a vida fazendo pequenos furtos, assim como Pixote foi retratado em 1980. Tendo dificuldade em arrumar outro trabalho como ator, Fernando resolve seguir seus irmãos para conseguir dinheiro e colocar mais comida na mesa de casa, mas seu sonho de ser ator jamais morrera.

Ser ator como Pixote foi estava cada vez mais distante. Quando Babenco viu o olhar do pequeno Fernando no início dos anos 80, logo escolheu o garoto dentre mais de três mil crianças para protagonizar seu filme. Aqueles pequenos olhos castanhos, transmitindo toda a ingenuidade e encantamento que Pixote deveria ter, ao alto de seus doze anos, sem pai e com uma história dura para seguir. Com quinze anos, Fernando já estava grande demais para os papéis que seu agente conseguia, e seu caminho para a Calçada da Fama ficava cada vez mais longe.

      Com a dramatização criada para o filme, entra Cida, sua mulher e mãe de sua filha Jaqueline, que tal qual Pixote (e Fernando), crescera sem o pai. Por vezes o filme ganha tons de romance adolescente, com o baile onde os pombinhos se apaixonam, a primeira transa, os encontros no parque e até os desentendimentos. Mas com Fernando em Cida, suas brigas eram pelo envolvimento do garoto com seus irmãos, culminando em sua prisão. A dramatização também está muito presente no roteiro, com muitas frases de efeito como: "Quem nasceu pra ser Pixote, nunca chega a James Dean". E Dean persegue a vida de Fernando com suas jaquetas de couro, sua Juventude Transviada e sua morte precoce.

      "A vida imita a arte". Essa foi uma frase muito repetida quando o jovem Fernando morreu. Após várias tentativas e fracassos no mundo da arte, o jovem voltou a crime com seus irmãos, mas por conta de sua filha que estava para nascer conseguiu um emprego longe da vida do crime. Mas Pixote já nasceu marcado. Garoto da periferia sem pai, semi-analfabeto e com passagem pela polícia, Fernando correu quando viu a polícia indo atrás dele. Sem camisa e desarmado, os policias atiraram oito vezes para ter a certeza que Pixote jamais voltaria ao mundo do crime.

      Fernando morreu. Outros Fernandos morrerão nas mãos de policiais. Pixote ficou, chocou e marcou. A marca de suas mãos sujas de sangue ficarão no imaginário brasileiro, como uma Calçada da Fama para os esquecidos no Brasil.